Histórico


Apresentação

O estado de Rondônia abriga 54 sociedades indígenas, o que lhe confere características de um estado pluricultural e multilingüístico. Estas etnias estão concentradas em 19 Terras Indígenas que perfazem um total de 20,15% da área do estado (4.807.290,42 ha). Estes povos há muito tempo anseiam por programas educacionais específicos e diferenciados que venham a atender as suas necessidades na área da subsistência, saúde e educação. Em função de constantes reivindicações dos povos indígenas por meio das entidades indígenas e indigenistas, o Estado de Rondônia assumiu sua responsabilidade no que se refere a formação de professores indígenas, dando início, em 1998, a um Programa de Formação de Professores Indígenas denominado Projeto Açaí. Esta formação ocorreu entre os anos de 1998 e 2004 dividida em onze etapas sendo que uma destas realizou-se nas comunidades - “Açaí nas Aldeias”. Este projeto habilitou aproximadamente 120 professores em Magistério Indígena para atuarem com alunos de 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental.

A certificação dos professores só aconteceu em julho de 2006, no mesmo momento em que estes reivindicavam, efetivamente, junto a Universidade Federal de Rondônia, a abertura de um curso específico de Licenciatura Intercultural para habilitá-los a atender as demandas das comunidades indígenas no que se refere a continuidade do ensino fundamental e médio. Desta forma, faz-se urgente ampliar o programa de formação de professores indígenas com a criação deste curso, atendendo, assim, direitos já garantidos na legislação em vigor.

Em resposta a estas reivindicações e atendendo a direitos assegurados pela legislação, Departamento 1 – DCHS – Departamento de Ciências Humanas e Sociais do Campus da UNiR de Ji-Paraná, apresenta, com muito orgulho e respeito aos povos indígenas de Rondônia, o Projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura em Educação Básica Intercultural. Este Projeto propõe quatro habilitações, quais sejam: 1. Educação Escolar Intercultural no Ensino Fundamental e Gestão Escolar; 2. Ciências da Linguagem Intercultural; 3. Ciências da Natureza e da Matemática Intercultural; 4. Ciências da Sociedade Intercultural.

A implantação deste curso está fundamentada no diálogo construído no decorrer dos últimos anos em encontros de professoras e professores da universidade com os povos Indígenas. Nesse processo contribuíram, de forma relevante, entidades e instituições – governamentais e não governamentais – apoiadoras desta causa. Essas discussões foram trazidas para o âmbito do Departamento de Ciências Humanas e Sociais e resultaram na inserção do curso – Licenciatura em Educação Básica Intercultural ao processo de ampliação e fortalecimento do referido Campus e Departamento.

A elaboração deste projeto vem ao encontro, também, da necessidade de a universidade contemplar na sua pauta formativa, cursos que tenham perfis e características próximas às demandas das populações tradicionais da Amazônia: os povos indígenas, extrativistas, ribeirinhos e quilombolas.

 

Povos Indígenas de Rondônia e sua história

Desde os primórdios da colonização brasileira as nações indígenas sofreram demasiadamente com a exploração e a exclusão. Além de tudo os povos indígenas foram, durante muito tempo, desconhecidos como seres humanos. Marconi (2001, p.224) afirma que "Nas primeiras décadas do séc. XVI eram tidos pelos colonizadores como seres subumanos, desprovidos de alma, estando mais próximos dos animais. Sua dignidade humana só foi restabelecida após 1537 quando a bula do Papa Paulo III os reconheceu como ‘verdadeiros homens livres’."

Os povos das várzeas amazônicas, juntamente com os do litoral nordestino, foram os primeiros a sofrer os impactos da “fricção interétnica” (OLIVEIRA, 1978). As etnias que habitavam as várzeas do Amazonas, tais como os Omagua e Tapajó, foram completamente dizimadas nos 150 anos que se seguiram ao contato ocorrido nos primórdios do séc XVI. Esta decadência populacional e cultural deveu-se à disseminação de doenças, ao apresamento promovido pelos portugueses, às missões organizadas pelos jesuítas espanhóis e à alteração do modo de produção. Meggers (1987, p.17) resume estas transformações ao detectar que: "Imersos nesse redemoinho de virtudes cristãs e motivações mercantis, os amazônicos viram perder-se a abundância dos alimentos e dos bens que eles próprios faziam e usavam, para produzir, com seu trabalho, mercadorias exportáveis. Com a civilização começa a era da fome e da penúria."

Muitos autóctones foram submetidos ao regime de trabalho escravo, prestando serviços aos novos donos da terra. Os bandeirantes adentravam os sertões em busca de índios para aprisionar e levar cativos para o trabalho nas fazendas coloniais. “Os índios eram submetidos a um ritmo regular de trabalho, praticando tanto as atividades de subsistência como a extração de drogas do sertão” (OLIVEIRA, 1987, p.207). A população indígena encontrava-se desamparada e desprovida de direitos. Segundo Ribeiro (1987, p.103) “Os que se opunham ao avanço das fronteiras da civilização eram caçados como feras desde os igarapés ignorados da Amazônia até as portas das regiões mais adiantadas”. Essa situação foi se perpetuando à medida que a ocupação das terras brasileiras foi se intensificando e internalizando.

Mesmo no período que antecedeu o contato com não-indígenas, antes de se definir a linha de fronteira noroeste estabelecendo os limites da presença do “civilizado”, a frente de expansão já se ampliava indiretamente, empurrando os grupos indígenas mais próximos para territórios de seus vizinhos mais distantes. Esta situação provocava guerras intertribais e até extermínio dessas populações (MARTINS, 1997).

Durante o primeiro ciclo da borracha, uma das estratégias de povoamento “espontâneas”, realizou-se entre os anos de 1877 a 1914. Nestes quase 50 anos de atividades extratoras, os extrativistas ocuparam todos os rios formadores da bacia do Madeira, que abrange as terras do atual Estado de Rondônia.

De acordo com Medeiros (2003, p. 83), "No decorrer do primeiro ciclo da borracha, não existia lei, ou orientação qualquer, no sentido de evitar conflitos entre o civilizado e o índio. A lei era determinada pelo patrão e executada pelos seringueiros. A lei era matar, trucidar o índio. Para o seringalista e seringueiro, o que importava era a área e produzir borracha, o índio, se ali estava, era um empecilho; portanto, devia ser eliminado, expulso do território produtivo".

Daí o primeiro ciclo da borracha no contexto indígena ser interpretado como nos demais ciclos econômicos – cassiterita, diamante, ouro – como o período “das correrias”. Isto porque, expulsos de suas aldeias, os indígenas vagavam pela floresta na expectativa de novos confrontos com o “civilizado” ou com outros grupos que ocupavam o mesmo espaço geográfico, provavelmente por terem sido expulsos de seu território tradicional pelos exploradores. Neste contexto, os indígenas não tinham mais tempo de caçar, pescar, ou cultivar suas roças, o que resultava em uma desorganização, até mesmo na desestruturação tribal (MEDEIROS, 2003).

Neste período, regiões próximas aos rios Madeira, Juruá, Purus, Acre, JiParaná, Abunã, Jamari, Candeias, Guaporé e outros foram, paulatinamente, sendo ocupadas por nordestinos e mamelucos que passaram a servir como mão-de-obra extratora. (RIBEIRO, 1987; TEIXEIRA; FONSECA, 2001).

Em função do segundo ciclo de exploração da borracha, entre os anos de 1940 e 1950, da mineração da cassiterita nos anos 60 e do processo de colonização dos anos 70, o antigo Território do Guaporé, que passou a chamar-se Território Federal de Rondônia no ano de 1956 , atraiu um intenso fluxo de migrantes. Os índios recuaram ocupando apenas pequenas áreas de terras. Mindlin (1985, p.17) ressalta que “[...] a imigração brasileira para Rondônia foi grande e seus efeitos se fizeram sentir sobre a população indígena, com lutas e mortes”. Devido a isso, postos indígenas da FUNAI foram abertos em Rondônia “[...] como o PI Rio NegroOcaia para os Pakaá-Nova, ou PI Lourdes para os Gavião e Arara que são da década de 60” (ibid., 1985, p.19).

A partir de outubro de 1964, os governos militares passaram a adotar medidas no sentido de aliviar as tensões que estavam se processando no campo em diversas regiões do país. Dentre estas medidas o Estado brasileiro promoveu uma colonização desordenada dos territórios do noroeste do país. “A característica comum deste conjunto de políticas implementadas na Amazônia foi reduzir o desenvolvimento à dimensão do crescimento econômico” (OTT, 2002, p. 95). O slogan “terra sem homens para homens sem terra” foi o mote que atraiu milhares de camponeses alijados de suas terras nas demais regiões do país para a Amazônia. Esse slogan deixava claro que para o Estado brasileiro a região amazônica era completamente desabitada. As centenas de etnias indígenas que ocupava essas terras não foram levadas em consideração.

Ao analisar os projetos que acompanharam a ocupação da região, tais como POLONOROESTE e PLANAFLORO , Ott (2002, p. 64) concluiu que “no caso específico da Amazônia, contemplada com grandes empreendimentos de mineração, hidrelétricas, estradas e colonização, sem que as agências internacionais, nacionais e regionais considerassem sua viabilidade, capacidade de suporte e impacto, o alto preço do ‘progresso econômico’ foi cobrado em dobro: da sociedade e da natureza”.

No que diz respeito à sociedade, o preço cobrado traduziu-se no fato de que, tanto índios quanto colonos, passaram a conviver com injustiças sociais. Os primeiros, sentindo-se cada vez mais acuados pela onda migratória, eventualmente, para se proteger, atacavam; os segundos, expulsos de suas regiões foram atraídos para a região amazônica para “amansar” a terra e ambos acabaram se enfrentando para deixar o “caminho livre” para o grande capital que atualmente domina as relações agrárias no estado de Rondônia.

Além de toda perseguição sofrida em função da ocupação de seus territórios, da extinção de muitas etnias, da drástica redução populacional de outras e do etnocídio cultural e religioso a que foram submetidos, os povos indígenas de Rondônia enfrentaram (e enfrentam) outras formas de dominação, dentre as quais, a imposição de um modelo escolar que não atendia as suas verdadeiras necessidades e que não levava em consideração sua forma de organização, sua visão de mundo e tampouco a diversidade lingüística destes povos.